Sobre leitura e experiência
Alguns devaneios coletivos sobre calhamaços, tempo e o que nossa relação com os livros diz sobre nossas experiências contemporâneas.
Faz um tempo que planejo escrever aqui, especialmente porque gostaria de ter um espaço para desenvolver ideias e reflexões sem precisar dispender o mesmo tipo de dedicação que os trabalhos acadêmicos exigem e nem a formalidade e, é claro, desenvolver temas que não necessariamente gerariam um artigo acadêmico. Seria, para mim, uma oportunidade de me experimentar. O que mais me trava, contudo, é o fato de aqui ser um espaço público, nos quais, em geral, não estou acostumada a compartilhar pensamentos mais livres. Mas, também vejo este canto aqui como oportuno justamente para me familiarizar com isso.
Hoje então, inauguro este espaço a partir da articulação de algumas reflexões com as quais me deparei e nas quais me detive recentemente. São coletivas porque não as penso sozinha, mas a partir das conversas que mantenho de longe com várias pessoas, vivas e mortas.
Eu acompanho canais literários com alguma frequência. São poucos, mas bons companheiros os que estão na minha lista de prediletos. Entre eles, está o canal da Paloma Lima. Ela lê e resenha, sobretudo, clássicos, mas volta e meia lê livros contemporâneos, especificamente aqueles mais “em alta” no momento. No seu mais recente vlog, ela resenhou o livro Pessoas normais de Sally Rooney — autora com a qual ainda não tive contato — e uma observação que fez, ainda no início dos seus apontamentos, ficou agarrada a mim.
Ela reparou que, ao menos nos livros contemporâneos (falo aqui em termos de época mesmo) que leu, havia uma ênfase maior na narrativa, nos plots, do que no desenvolvimento interno dos personagens, exemplificados por livros do tipo romance de formação. (Diga-se de passagem que o livro de Rooney conseguiria resgatar um pouco desta construção interna, na sua opinião).
Poucos dias depois, nas sugestões de canais literários, passei por um que não conhecia e cuja qualidade, sinceramente, era questionável. É muito tênue a linha entre uma crítica que vá ao centro da questão de porque se lê pouco e uma crítica moralista que culpabiliza as pessoas, desconsiderando uma complexidade de razões envolvidas na não leitura ou na pouca leitura. Nesse caso, a coisa era mais do segundo tipo. Mas, todavia, contudo, entretanto hehe um ponto valeria a pena ser destacado da fala da pessoa em questão: o fato de que a busca por indicações de livros em listas ou mesmo canais e afins aponta para um certo desconhecimento de si, uma certa ausência de trabalho subjetivo para identificar aquilo de que gosta, aquilo que a convoca.
Juntando estas duas afirmações completamente aleatórias, sou conduzida a pensar que parece que os livros refletem, nessa ausência de construção interna dos personagens, o mesmo tipo de movimento — ou ausência de movimento? — de alguns leitores. Evidencia a própria lacuna de construção interna do nosso tempo. Há uma quebra, uma fratura entre o dentro e o fora. Aquilo que se busca, agora também nos livros, são enredos envolventes (e até aí ok, quem não quer?) nervosos, velozes (tanto no ritmo de sua história quanto no tempo que demandam para serem lidos).
Este último aspecto, por fim, me levou a pensar no porque, curiosamente, parece muito difícil introduzir calhamaços nas rotinas de leitura e, indo mais longe, pensar em escrever um calhamaço. E aqui não falo nem exclusivamente da literatura, mas também de livros teóricos, pensando mais na Filosofia, que é a parte que me toca.
A escrita de um calhamaço geralmente demanda parte de uma vida, ou mesmo se torna o projeto de uma vida. Seja dedicados à escrita em si ou nas pesquisas e rascunhos que visam construí-la. Quem, hoje, em meio às atribulações e estímulos infindáveis da época, pode dedicar a vida a escrita de um texto assim, ou mesmo consegue elaborar suficientemente uma experiência ou pensamento a ponto de gerar uma obra assim? Arrisco a dizer que são poucos.
O tempo é também uma grande questão para o leitor contemporâneo. E sabe-se que a leitura consome tempo, e o exige não apenas para mover os olhos sob as páginas percorrendo as frases, mas também para a elaboração daquilo que se lê. Depois que uma leitura é finalizada, se for um clássico nas definições de Calvino e assim nunca deixar de ter coisas a dizer, ela irá invadir nosso espaço subjetivo, irá demandá-lo para crescer.
É claro que uma leitura curta pode sim fazer isso, mas nada como uma construção lenta, vagarosa, que nos envolve sem percebermos na teia daquilo que quer nos mostrar. Pelo menos eu, como leitora, gosto de me sentir apanhada pelo livro quando menos espero. Bom, aqui não se trata de uma regra, podem haver (e há) livros curtos que nos produzem isso — meu escritor preferido é contemporâneo e não escreve livros gigantescos —, assim como há livros longos e enfadonhos. Mas, o calhamaço ainda assim é, da forma como entendo, uma questão, e isso porque com seu tamanho ele nos lembra do que a leitura, a experiência, a construção de um conhecimento sobre a realidade, seja ela interna ou externa, demanda: envolvimento e tempo.
Por fim, isso tudo me fez lembrar do questionamento lançado por Walter Benjamin no texto Experiência e pobreza:
Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno?
Obs.: Essa é uma reflexão a troco de si mesma e contradizendo o que acabo de escrever, não gestada por um longo tempo. Não há aqui a pretensão de dizer a verdade de tudo, ou valorar um tipo de literatura como bom e outro como ruim. Não há leituras ruins. Isso não impede, contudo, de pensar sobre as distintas formas de nos relacionarmos com os livros e de procurarmos entender, a partir de nossa forma de ler, o que ela mostra e diz sobre nós mesmos e nosso tempo.
Estou bastante feliz por ter iniciado isso aqui, e espero em breve voltar a escrever! ♡